domingo, 6 de janeiro de 2013

Duas Mãos....

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microcopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer

esse amanhecer
mais noite que a noite.

Ei José

OSÉ

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, Você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?
Carlos Drummond de Andrade

E agora Maria?

E agora Maria, o dinheiro acabou, a comida terminou, o seu homem sumiu...
A sua bolsa de estudos escapuliu?
O dia findou, e agora Maria?
E agora tu que és sem sobrenome?
Que chora pelos filhos drogados
Tu que não sabes escrever
Que ama, que grita e esperneia
Cada vez que um filho teu se vai para o tráfico?
Não tem macho, está sem alucinação
O sexo se foi, já não pode viver,
Já não pode dançar seu pagode
Beber já não pode, a tolerância é zero...
O Sonho acabou, a juventude foi embor
E a felicidade não veio...
Tudo finalizou tudo esquivou e tudo zombou
E agora Maria? Sobraram as pontes?
E agora Maria? Cadê os sonhos de menina?
Seu doce sorriso, seu rebolado ativo,
Sua paixão desvairada pela vida?
Quer voltar para casa?
Não existe lar, as drogas mataram!
Não existe abertura nas portas e janelas,
Na arquitetura das pontes do Brasil!
Quer um banheiro, um espelho para se enfeitar?
Não existe espelhos, eles se espatifaram no crack....
E agora Maria?
Se tu gritasse, se lamentasse... Não adiantaria, a policia te pegaria.... taparia os olhos?...
Levariam teu filho? Ou...
Se tu perecesses, mas tu não morres.... És árdua, feita as pedras brancas...
Que te consomem na tua fome...
Sozinha no escuro da noite vazia
Qual um bicho perdido da mata
Sem tapume quente para te aquecer
Tu marchas pra onde com tua agonia e teus segredos?