terça-feira, 9 de novembro de 2010

O Mundo e as sua influências culturais, políticas, econômicas e religiosas... Sob o Olhar de Peter

Análise sobre o Olhar de Peter Demant

O autor – Peter Demant nasceu em Amsterdã, Holanda, em 1951. Historiador, especialista em questões do Oriente Médio, obteve seu doutorado em 1988, na Universidade de Amsterdã, com dissertação sobre a colonização israelense dos territórios palestinos entre 1967 e 1977.
Morou em Jerusalém de 1990 a 1998, onde foi pesquisador sênior do The Harry S. Truman Research Institute for the Advancement of Peace, na Universidade Hebraica, e esteve ativamente envolvido nos diálogos entre acadêmicos israelenses e palestinos. Desde 1999 mora no Brasil, onde é professor-doutor no departamento de História da USP, lecionando Relações Internacionais e História da Ásia.


Nos últimos quinze anos, dezenas de livros têm sido publicados em inglês, francês e alemão sobre o mundo muçulmano e seu complexo relacionamento com o Ocidente.
Desde os atentados terroristas contra as torres gêmeas em Nova York, em 11 de setembro de 2001, o que antes era um rio se transformou em cachoeira. No entanto, até aqui, infelizmente pouco ou quase nada de relevante se publicou em português sobre o tema. Este livro espera contribuir para preencher tão incômoda lacuna. Seu objetivo é proporcionar ao leitor brasileiro uma idéia geral da civilização do islã, tornar compreensível como e por que parcelas significativas do mundo muçulmano vêm se radicalizando, politizando sua religião e agredindo o Ocidente – uma violência que, da perspectiva dos fundamentalistas, constitui apenas uma merecida e justificável resposta às agressões recebidas.
O futuro da humanidade dependerá, em ampla medida, do êxito ou do fracasso coletivo em lidar com a dificuldade da coexistência entre as diferenças. E poucas diversidades colocam-nos um desafio mais urgente do que o fundamentalismo muçulmano. Acredito que possamos evitar o anunciado “choque das civilizações” entre o Ocidente e o islã, uma guerra na qual todos nós sofreremos, desde que ambos os lados façam as concessões e os esforços necessários. A primeira tarefa, imprescindível, é exercitar a compreensão. Ao Ocidente, cabe entender como a riqueza histórica do mundo muçulmano se vincula à sua ira atual – e como o próprio mundo ocidental é cúmplice, de certa forma, da crise contemporânea do islã. Um entendimento da dinâmica interna do mundo muçulmano, assim como de sua interação com os povos vizinhos, constitui o primeiro passo para desenhar políticas mais compassivas, e mais efetivas, frente a ele.
O mundo muçulmano abrange, nos dias de hoje, cerca de 1,3 bilhão de seres humanos, um quinto da humanidade com o qual precisamos inevitavelmente repensar a convivência. Eles se encontram concentrados um vasto arco, que se estende da África ocidental até a Indonésia, passando pelo Oriente Médio e a Índia.
Em muitos países desta vasta região, os muçulmanos constituem a maioria da população local e, em outros, importantes minorias. Tal mundo é naturalmente muito diverso quanto às suas histórias, nações e etnias, línguas, maneiras de viver consigo mesmo, com seu meio ambiente e com seus vizinhos. Em comum, porém, todos os povos do mundo muçulmano têm um único e decisivo fator: o islã. Muito embora a própria religião seja para eles experienciada e praticada das mais diversas maneiras.
Há contrastes não apenas nas formas visíveis, rituais e sociais, mas até no núcleo das crenças e na maneira de aplicá-las à sociedade. Não poderia ter sido de outra forma. Como veremos na primeira das três partes que compõem este livro, o islã surgiu há mais de 1.400 anos e se espalhou por três continentes e inúmeras sociedades, encontrando condições vastamente diferentes entre si.
Desde já, entretanto, faz-se necessário esclarecer a grande confusão terminológica que cerca nosso tema. Em primeiro lugar, o termo muçulmano refere-se a um fenômeno sociológico, enquanto islâmico diz respeito especificamente à religião.
Desta maneira, por exemplo, pode-se afirmar que o Paquistão possui uma maioria muçulmana; mas nem por isso é um Estado islâmico. Islamismo e islamista, por sua vez, são utilizados para definir o movimento religioso radical do islã político, inspiração do que também se chama popularmente de fundamentalismo muçulmano.
É, portanto, confuso e incorreto usar o termo islamismo como sinônimo de islã, como acontece ocasionalmente em português.
O termo islã é usado ainda para definir determinadas áreas geográficas e civilizacionais, como a península arábica ou o chamado Oriente Médio, onde a religião islâmica é predominante. Na verdade, se a palavra árabe refere-se a um povo específico, Oriente Médio diz respeito a uma região geográfica em particular e islã, como vimos, a uma religião. Toda essa confusão tem origem no caráter total do islã, que é mais do que um simples corpo de crenças, mas algo que influencia e determina (ou pelo menos pretende determinar) toda a vida social e mesmo as esferas da economia, da política e das relações internacionais. Ainda hoje há forte sobreposição dessas definições: afinal, raciocina-se, os árabes moram no Oriente Médio e são majoritariamente muçulmanos. Entretanto, existem no Oriente Médio importantes nações muçulmanas de povos não-árabes, como os turcos e curdos, e mesmo nações não predominantemente muçulmanas, como Israel, cuja população é majoritariamente judaica.
Originalmente, os termos “árabe” e “muçulmano” coincidiam: de fato, restritos à península da Arábia, os árabes se tornaram quase todos muçulmanos. Num segundo momento, contudo, a expansão dessa população criou a esfera cultural do Oriente Médio, que adotou amplamente o idioma arábico e, em sua maioria, abraçou o islã. A essa altura, o mundo muçulmano e o chamado Oriente Médio é que eram coincidentes. Em um terceiro momento, o islã conquistou adeptos em outras partes do planeta. Assim, o Oriente Médio se reduziu a mais uma região, entre outras tantas, do mundo muçulmano – ainda que aquela com o maior peso ideológico, pelo fato da revelação e da atuação do profeta Maomé terem ocorrido ali. E também por terem partido de lá as primeiras expansões e por ser o árabe a língua sagrada do Alcorão1.
Aliás, o próprio termo Oriente Médio, usado para definir a região geográfica que é hoje o lar de cerca de 400 milhões de muçulmanos, comporta discussões. O termo (do inglês Middle East) é evidentemente de cunho eurocentrista e data, justamente, do século XIX, época em que o império britânico controlou os mares e um quarto da Terra.
De todo modo, situado historicamente na encruzilhada de múltiplas influências, o Oriente Médio – expressão que utilizaremos neste livro, uma vez que já foi consagrada e incorporada ao uso geral – foi durante séculos a plataforma giratória e o ponto de comunicação, mantido por caravanas terrestres e linhas marítimas, entre a Europa e as civilizações mais orientais da Índia, da China e do sudeste asiático.
Assim, não há dúvidas de que essa é a região mais complexa do mundo muçulmano, em termos das suas identidades coletivas, problemas políticos e conflitos étnico-religiosos. A interação histórica com outros povos, que nos séculos mais recentes tomou a forma de intervenções ocidentais mais diretas, fez da região exatamente um dos centros mais expressivos do sentimento anti-ocidental. Nas últimas décadas, o Oriente Médio (árabe em particular), tem sido a área de atuação da maioria dos pensadores e ativistas fundamentalistas. O Oriente Médio continua funcionando, assim, como ímã de tensões internacionais.
Por todos esses motivos, este livro dedica uma atenção especial a tal fração do mundo muçulmano. Contudo, é sempre bom ter em mente que, numericamente falando, menos de 30% de todos os muçulmanos no planeta se encontram ali. Na verdade, o mundo muçulmano se divide em quatro grandes blocos, geográfica e culturalmente distintos. Além do Oriente Médio, ou seja, do bloco médio-oriental, há ainda o indiano, o malaio e o africano, todos devidamente detalhados e situados historicamente na primeira parte deste volume. Essas quatro regiões englobam mais de 95% de todos os muçulmanos do mundo. Observam-se aí, de antemão, dois elementos cruciais. Por um lado, a citada interação com diferentes civilizações caminhou no sentido contrário à teoria do islã, que prescreve a unidade de todos os fiéis numa única umma (ummah, comunidade), o que também pressuporia uma unidade política. Mas, ao contrário, a diversidade das experiências fez com que o mundo muçulmano tenha sempre sido, e continue a ser, muito dividido.
Por outro lado, a grande maioria dos muçulmanos vive no terceiro mundo. Em outras palavras, é pobre. Num passado glorioso, as sociedades muçulmanas foram ricas e poderosas. Como veremos, sua decadência a um estado de impotência e exploração constitui parte integrante da história da colonização: é a contrapartida da emergência do Ocidente. Com economias controladas por pequenas elites, regimes não-representativos e autoritários, altas taxas de crescimento populacional e altos níveis de expectativas – frustradas –, várias dessas sociedades muçulmanas aprofundam sua crítica ao Ocidente, acusado de manter as estruturas da desigualdade.
Este livro discorre mais sobre muçulmanos do que sobre o islã, ou seja, mais sobre grupos humanos específicos, suas histórias e os desafios que eles enfrentam hoje do que sobre questões teológicas. Sua abordagem é, em primeiro lugar, antropológica, histórica e política. Essa, contudo, é uma diferenciação artificial, didática, pois tanto as dificuldades quanto as possíveis opções para lidar com elas têm, pelo menos parcialmente, sua raiz na religião. Para verificar isso, basta pensar nos acirrados debates sobre o papel das leis da religião (a chamada xaria) na vida pública e privada em países como Egito, Turquia ou Irã. Ou nos movimentos terroristas que, fundamentados na sua leitura do islã, estão violentamente desestabilizando regimes e Estados que consideram corruptos ou hostis chegando a ameaças à própria convivência internacional. Ou ainda naqueles grupos e pensadores menos conhecidos que, do Marrocos à Malásia, inspiram-se na mesma religião para lutar em prol da democracia e do diálogo pacífico com outras civilizações. Em todos esses exemplos, a religião é ponto de partida, ainda que para propostas e propósitos diferentes. Portanto, para entender o mundo muçulmano hoje, assunto da segunda parte deste volume, torna-se imprescindível compreender sua religião.
O islã, como o cristianismo, é uma fé expansionista e monopolista da verdade. Os consecutivos impérios árabes e muçulmanos expandiram a fé muçulmana, a língua árabe e padrões culturais comuns. Hoje, perto de 95% da população do Oriente Médio é muçulmana. No entanto, quando o islã ali chegou, possivelmente 95% era cristã. A diminuição do cristianismo na zona de seu nascimento gerou um conflito duradouro entre essas duas religiões rivais. Nos últimos duzentos anos, a influência do cristianismo também diminuiu na Europa, mas a relação antagônica com o Oriente Médio só se exacerbou por fatores econômicos e geopolíticos. Os Estados muçulmanos do Oriente Médio se enfraqueceram; mas a região cresceu em importância estratégica – afinal, muito do petróleo do mundo está lá – e tornou-se espaço privilegiado para as rivalidades com e entre as potências européias.
A justaposição de tantos fatores – religiosos, estratégicos e econômicos – explica por que o Oriente Médio capta tanta atenção de políticos, jornalistas e da opinião pública internacional. As populações muçulmanas procuram reconquistar sua posição, outrora influente, no planeta. Tais reivindicações desafiam os interesses vitais das potências ocidentais e, por extensão, de todos os países capitalistas desenvolvidos do primeiro mundo. O resultado é que essa luta é o drama central das relações internacionais hoje. É uma luta que assume cada vez mais uma cor religiosa e é isso que ameaça transformar um mero confronto de interesses em um “choque de civilizações”.
O confronto do islã com “a modernidade” também será tratado na segunda parte deste livro. A “volta à religião” é um fenômeno internacional que se observa entre cristãos e judeus tanto quanto entre muçulmanos. Não há dúvida de que o mundo muçulmano, no Oriente Médio em particular, estava pouco preparado para os controles políticos e econômicos – e para a invasão cultural – que as potências ocidentais conseguiram impor graças à sua supremacia militar. Tal supremacia, contudo, foi em si mesma um efeito colateral da modernização efetuada nas sociedades ocidentais pelas revoluções políticas e industriais, iniciadas no final do século XVIII.
Quando os muçulmanos se viram confrontados pela superioridade ocidental, a humilhação foi provavelmente maior do que a sofrida por outras civilizações, pois o islã considera uma impossibilidade teológica a tentativa de equiparar-se, nesses termos, ao Ocidente. Houve dois tipos de reação: absorver a receita da modernidade do Ocidente e rejeitar o papel da religião; ou se refugiar num tradicionalismo religioso. Veremos como uma cadeia de derrotas militares, socioeconômicas e culturais tirou sistematicamente a legitimidade, no mundo árabe, dos regimes e projetos associados à ocidentalização. Abriu-se, então, um vácuo ideológico, que continua até hoje e está sendo preenchido pelos proponentes do projeto alternativo, o fundamentalismo muçulmano. A lógica desse pensamento auto-referencial é simples: “perdemos não porque somos religiosos demais e não modernos o bastante; mas porque tentamos imitar o Ocidente e esquecemos a religião. Deus nos abandona porque nós abandonamos a Ele”.
A rejeição do modelo ocidental pelos pensadores islamistas é abrangente, incluindo não apenas uma crítica da “injusta” atuação das potências cristãs, como também uma recusa de seus modos sociais “dissolutos” que “infectam” o mundo muçulmano. Baseando-se numa leitura específica das fontes religiosas, islamistas desenvolvem um projeto para uma sociedade melhor, igual à primeira sociedade islâmica, estabelecida pelo fundador do islã, o profeta Maomé. Trata-se na verdade de uma “utopia ao contrário”. Contudo, o que mais surpreende e diferencia o islamismo dos tradicionalismos anteriores é principalmente a adoção seletiva de tecnologias ocidentais, do rádio e tevê até às armas de destruição em massa.
O fundamentalismo não é um movimento unificado (ainda que a unidade dos muçulmanos esteja sempre estampada em sua bandeira); difere de país a país, de um período a outro, mas só tem crescido. Os últimos capítulos deste livro analisam essa diferenciação e expansão – e consideram suas possíveis implicações. O islamismo conquistou uma certa influência em países como o Egito ou a Síria nos anos 70, mas só ganhou notoriedade internacional pela revolução xiita no Irã e pelos primeiros seqüestros e homens-bomba no Líbano. Desde os anos 80, desmentindo as previsões, expande-se continuamente, e se torna cada vez mais extremista. Na década de 1990, assistimos a uma explosão de incidentes violentos provocados por grupos islamistas, desde a Nigéria até a Indonésia. Quando o establishment nas comunidades atingidas reage tentando restabelecer a ordem, muitas vezes com apoio ocidental, civis inocentes sofrem as conseqüências, e os terroristas tendem a radicalizar ainda mais a sua ação. De modo paradoxal, as políticas oficiais usadas para reprimir a violência se tornam instrumentos em favor dos fundamentalistas.
Como então o Ocidente precisa – e pode – reagir? Há verdadeiramente perigo ou só exageros sensacionalistas? O islã é uma religião violenta ou os islamistas nos apresentam uma corrupção da bela tradição que no passado enriqueceu o Oriente – e que poderia voltar a fazê-lo? As respostas dependerão de mudanças internas no islã que podem perfeitamente ser estimuladas por meio de um diálogo entre fés e civilizações. A última parte deste livro observa os argumentos contra e a favor da coexistência ou de seu oposto, o “choque dos mundos”. Numa conjuntura tão complexa, a conclusão só pode ser ambígua. Podem haver, contudo, algumas lições.
A primeira é a de que o islã é, em potência, mais flexível do que se pensa; permite e precisa do diálogo com o outro. Da mesma maneira, para não mergulhar numa guerra de religiões sem saída, o Ocidente também precisa dessa comunicação.
Porém, com um islamismo violento que preconiza uma guerra para estabelecer o reino de Deus na Terra, não existe diálogo viável: ele constitui um crescente risco para a segurança de todos. A luta contra ele é não somente um interesse do mundo ocidental como também da grande maioria dos muçulmanos, que seriam suas primeiras vítimas. No entanto, sem transformações profundas na estrutura da desigualdade global que mantém essas populações presas num ciclo de empobrecimento e isolamento, não se conseguirá evitar a ampliação maciça do extremismo. A tarefa, portanto, é abrangente – e da maior urgência. A leitura deste livro pretende colaborar com ela.
Pelas complexidades inerentes ao assunto, escrever este livro implicou um trabalho árduo. Queria agradecer em particular o apoio inestimável de meus alunos Lívia Oushiro e Orion Klautau e da minha esposa, Eliane Rosenberg Colorni, que tornaram o texto final melhor e mais legível. A leitura atenta dos originais por parte deles foi, sem dúvida, fundamental.
Nos últimos quinze anos, dezenas de livros têm sido publicados em inglês, francês e alemão sobre o mundo muçulmano e seu complexo relacionamento com o Ocidente.
Desde os atentados terroristas contra as torres gêmeas em Nova York, em 11 de setembro de 2001, o que antes era um rio se transformou em cachoeira. No entanto, até aqui, infelizmente pouco ou quase nada de relevante se publicou em português sobre o tema. Este livro espera contribuir para preencher tão incômoda lacuna. Seu objetivo é proporcionar ao leitor brasileiro uma idéia geral da civilização do islã, tornar compreensível como e por que parcelas significativas do mundo muçulmano vêm se radicalizando, politizando sua religião e agredindo o Ocidente – uma violência que, da perspectiva dos fundamentalistas, constitui apenas uma merecida e justificável resposta às agressões recebidas.
O futuro da humanidade dependerá, em ampla medida, do êxito ou do fracasso coletivo em lidar com a dificuldade da coexistência entre as diferenças. E poucas diversidades colocam-nos um desafio mais urgente do que o fundamentalismo muçulmano. Acredito que possamos evitar o anunciado “choque das civilizações” entre o Ocidente e o islã, uma guerra na qual todos nós sofreremos, desde que ambos os lados façam as concessões e os esforços necessários. A primeira tarefa, imprescindível, é exercitar a compreensão. Ao Ocidente, cabe entender como a riqueza histórica do mundo muçulmano se vincula à sua ira atual – e como o próprio mundo ocidental é cúmplice, de certa forma, da crise contemporânea do islã. Um entendimento da dinâmica interna do mundo muçulmano, assim como de sua interação com os povos vizinhos, constitui o primeiro passo para desenhar políticas mais compassivas, e mais efetivas, frente a ele.
O mundo muçulmano abrange, nos dias de hoje, cerca de 1,3 bilhão de seres humanos, um quinto da humanidade com o qual precisamos inevitavelmente repensar a convivência. Eles se encontram concentrados num vasto arco, que se estende da África ocidental até a Indonésia, passando pelo Oriente Médio e a Índia.
Em muitos países desta vasta região, os muçulmanos constituem a maioria da população local e, em outros, importantes minorias. Tal mundo é naturalmente muito diverso quanto às suas histórias, nações e etnias, línguas, maneiras de viver consigo mesmo, com seu meio ambiente e com seus vizinhos. Em comum, porém, todos os povos do mundo muçulmano têm um único e decisivo fator: o islã. Muito embora a própria religião seja para eles experienciada e praticada das mais diversas maneiras.
Há contrastes não apenas nas formas visíveis, rituais e sociais, mas até no núcleo das crenças e na maneira de aplicá-las à sociedade. Não poderia ter sido de outra forma. Como veremos na primeira das três partes que compõem este livro, o islã surgiu há mais de 1.400 anos e se espalhou por três continentes e inúmeras sociedades, encontrando condições vastamente diferentes entre si.
Desde já, entretanto, faz-se necessário esclarecer a grande confusão terminológica que cerca nosso tema. Em primeiro lugar, o termo muçulmano refere-se a um fenômeno sociológico, enquanto islâmico diz respeito especificamente à religião.
Desta maneira, por exemplo, pode-se afirmar que o Paquistão possui uma maioria muçulmana; mas nem por isso é um Estado islâmico. Islamismo e islamista, por sua vez, são utilizados para definir o movimento religioso radical do islã político, inspiração do que também se chama popularmente de fundamentalismo muçulmano.
É, portanto, confuso e incorreto usar o termo islamismo como sinônimo de islã, como acontece ocasionalmente em português.
O termo islã é usado ainda para definir determinadas áreas geográficas e civilizacionais, como a península arábica ou o chamado Oriente Médio, onde a religião islâmica é predominante. Na verdade, se a palavra árabe refere-se a um povo específico, Oriente Médio diz respeito a uma região geográfica em particular e islã, como vimos, a uma religião. Toda essa confusão tem origem no caráter total do islã, que é mais do que um simples corpo de crenças, mas algo que influencia e determina (ou pelo menos pretende determinar) toda a vida social e mesmo as esferas da economia, da política e das relações internacionais. Ainda hoje há forte sobreposição dessas definições: afinal, raciocina-se, os árabes moram no Oriente Médio e são majoritariamente muçulmanos. Entretanto, existem no Oriente Médio importantes nações muçulmanas de povos não-árabes, como os turcos e curdos, e mesmo nações não predominantemente muçulmanas, como Israel, cuja população é majoritariamente judaica.
Originalmente, os termos “árabe” e “muçulmano” coincidiam: de fato, restritos à península da Arábia, os árabes se tornaram quase todos muçulmanos. Num segundo momento, contudo, a expansão dessa população criou a esfera cultural do Oriente Médio, que adotou amplamente o idioma arábico e, em sua maioria, abraçou o islã. A essa altura, o mundo muçulmano e o chamado Oriente Médio é que eram coincidentes. Em um terceiro momento, o islã conquistou adeptos em outras partes do planeta. Assim, o Oriente Médio se reduziu a mais uma região, entre outras tantas, do mundo muçulmano – ainda que aquela com o maior peso ideológico, pelo fato da revelação e da atuação do profeta Maomé terem ocorrido ali. E também por terem partido de lá as primeiras expansões e por ser o árabe a língua sagrada do Alcorão1.
Aliás, o próprio termo Oriente Médio, usado para definir a região geográfica que é hoje o lar de cerca de 400 milhões de muçulmanos, comporta discussões. O termo (do inglês Middle East) é evidentemente de cunho eurocentrista e data, justamente, do século XIX, época em que o império britânico controlou os mares e um quarto da Terra.
De todo modo, situado historicamente na encruzilhada de múltiplas influências, o Oriente Médio – expressão que utilizaremos neste livro, uma vez que já foi consagrada e incorporada ao uso geral – foi durante séculos a plataforma giratória e o ponto de comunicação, mantido por caravanas terrestres e linhas marítimas, entre a Europa e as civilizações mais orientais da Índia, da China e do sudeste asiático.
Assim, não há dúvidas de que essa é a região mais complexa do mundo muçulmano, em termos das suas identidades coletivas, problemas políticos e conflitos étnico-religiosos. A interação histórica com outros povos, que nos séculos mais recentes tomou a forma de intervenções ocidentais mais diretas, fez da região exatamente um dos centros mais expressivos do sentimento anti-ocidental. Nas últimas décadas, o Oriente Médio (árabe em particular), tem sido a área de atuação da maioria dos pensadores e ativistas fundamentalistas. O Oriente Médio continua funcionando, assim, como ímã de tensões internacionais.
Por todos esses motivos, este livro dedica uma atenção especial a tal fração do mundo muçulmano. Contudo, é sempre bom ter em mente que, numericamente falando, menos de 30% de todos os muçulmanos no planeta se encontram ali. Na verdade, o mundo muçulmano se divide em quatro grandes blocos, geográfica e culturalmente distintos. Além do Oriente Médio, ou seja, do bloco médio-oriental, há ainda o indiano, o malaio e o africano, todos devidamente detalhados e situados historicamente na primeira parte deste volume. Essas quatro regiões englobam mais de 95% de todos os muçulmanos do mundo. Observam-se aí, de antemão, dois elementos cruciais. Por um lado, a citada interação com diferentes civilizações caminhou no sentido contrário à teoria do islã, que prescreve a unidade de todos os fiéis numa única umma (ummah, comunidade), o que também pressuporia uma unidade política. Mas, ao contrário, a diversidade das experiências fez com que o mundo muçulmano tenha sempre sido, e continue a ser, muito dividido.
Por outro lado, a grande maioria dos muçulmanos vive no terceiro mundo. Em outras palavras, é pobre. Num passado glorioso, as sociedades muçulmanas foram ricas e poderosas. Como veremos, sua decadência a um estado de impotência e exploração constitui parte integrante da história da colonização: é a contrapartida da emergência do Ocidente. Com economias controladas por pequenas elites, regimes não-representativos e autoritários, altas taxas de crescimento populacional e altos níveis de expectativas – frustradas –, várias dessas sociedades muçulmanas aprofundam sua crítica ao Ocidente, acusado de manter as estruturas da desigualdade.
Este livro discorre mais sobre muçulmanos do que sobre o islã, ou seja, mais sobre grupos humanos específicos, suas histórias e os desafios que eles enfrentam hoje do que sobre questões teológicas. Sua abordagem é, em primeiro lugar, antropológica, histórica e política. Essa, contudo, é uma diferenciação artificial, didática, pois tanto as dificuldades quanto as possíveis opções para lidar com elas têm, pelo menos parcialmente, sua raiz na religião. Para verificar isso, basta pensar nos acirrados debates sobre o papel das leis da religião (a chamada xaria) na vida pública e privada em países como Egito, Turquia ou Irã. Ou nos movimentos terroristas que, fundamentados na sua leitura do islã, estão violentamente desestabilizando regimes e Estados que consideram corruptos ou hostis chegando a ameaças à própria convivência internacional. Ou ainda naqueles grupos e pensadores menos conhecidos que, do Marrocos à Malásia, inspiram-se na mesma religião para lutar em prol da democracia e do diálogo pacífico com outras civilizações. Em todos esses exemplos, a religião é ponto de partida, ainda que para propostas e propósitos diferentes. Portanto, para entender o mundo muçulmano hoje, assunto da segunda parte deste volume, torna-se imprescindível compreender sua religião.
O islã, como o cristianismo, é uma fé expansionista e monopolista da verdade. Os consecutivos impérios árabes e muçulmanos expandiram a fé muçulmana, a língua árabe e padrões culturais comuns. Hoje, perto de 95% da população do Oriente Médio é muçulmana. No entanto, quando o islã ali chegou, possivelmente 95% era cristã. A diminuição do cristianismo na zona de seu nascimento gerou um conflito duradouro entre essas duas religiões rivais. Nos últimos duzentos anos, a influência do cristianismo também diminuiu na Europa, mas a relação antagônica com o Oriente Médio só se exacerbou por fatores econômicos e geopolíticos. Os Estados muçulmanos do Oriente Médio se enfraqueceram; mas a região cresceu em importância estratégica – afinal, muito do petróleo do mundo está lá – e tornou-se espaço privilegiado para as rivalidades com e entre as potências européias.
A justaposição de tantos fatores – religiosos, estratégicos e econômicos – explica por que o Oriente Médio capta tanta atenção de políticos, jornalistas e da opinião pública internacional. As populações muçulmanas procuram reconquistar sua posição, outrora influente, no planeta. Tais reivindicações desafiam os interesses vitais das potências ocidentais e, por extensão, de todos os países capitalistas desenvolvidos do primeiro mundo. O resultado é que essa luta é o drama central das relações internacionais hoje. É uma luta que assume cada vez mais uma cor religiosa e é isso que ameaça transformar um mero confronto de interesses em um “choque de civilizações”.
O confronto do islã com “a modernidade” também será tratado na segunda parte deste livro. A “volta à religião” é um fenômeno internacional que se observa entre cristãos e judeus tanto quanto entre muçulmanos. Não há dúvida de que o mundo muçulmano, no Oriente Médio em particular, estava pouco preparado para os controles políticos e econômicos – e para a invasão cultural – que as potências ocidentais conseguiram impor graças à sua supremacia militar. Tal supremacia, contudo, foi em si mesma um efeito colateral da modernização efetuada nas sociedades ocidentais pelas revoluções políticas e industriais, iniciadas no final do século XVIII.
Quando os muçulmanos se viram confrontados pela superioridade ocidental, a humilhação foi provavelmente maior do que a sofrida por outras civilizações, pois o islã considera uma impossibilidade teológica a tentativa de equiparar-se, nesses termos, ao Ocidente. Houve dois tipos de reação: absorver a receita da modernidade do Ocidente e rejeitar o papel da religião; ou se refugiar num tradicionalismo religioso. Veremos como uma cadeia de derrotas militares, socioeconômicas e culturais tirou sistematicamente a legitimidade, no mundo árabe, dos regimes e projetos associados à ocidentalização. Abriu-se, então, um vácuo ideológico, que continua até hoje e está sendo preenchido pelos proponentes do projeto alternativo, o fundamentalismo muçulmano. A lógica desse pensamento auto-referencial é simples: “perdemos não porque somos religiosos demais e não modernos o bastante; mas porque tentamos imitar o Ocidente e esquecemos a religião. Deus nos abandona porque nós abandonamos a Ele”.
A rejeição do modelo ocidental pelos pensadores islamistas é abrangente, incluindo não apenas uma crítica da “injusta” atuação das potências cristãs, como também uma recusa de seus modos sociais “dissolutos” que “infectam” o mundo muçulmano. Baseando-se numa leitura específica das fontes religiosas, islamistas desenvolvem um projeto para uma sociedade melhor, igual à primeira sociedade islâmica, estabelecida pelo fundador do islã, o profeta Maomé. Trata-se na verdade de uma “utopia ao contrário”. Contudo, o que mais surpreende e diferencia o islamismo dos tradicionalismos anteriores é principalmente a adoção seletiva de tecnologias ocidentais, do rádio e tevê até às armas de destruição em massa.
O fundamentalismo não é um movimento unificado (ainda que a unidade dos muçulmanos esteja sempre estampada em sua bandeira); difere de país a país, de um período a outro, mas só tem crescido. Os últimos capítulos deste livro analisam essa diferenciação e expansão – e consideram suas possíveis implicações. O islamismo conquistou uma certa influência em países como o Egito ou a Síria nos anos 70, mas só ganhou notoriedade internacional pela revolução xiita no Irã e pelos primeiros seqüestros e homens-bomba no Líbano. Desde os anos 80, desmentindo as previsões, expande-se continuamente, e se torna cada vez mais extremista. Na década de 1990, assistimos a uma explosão de incidentes violentos provocados por grupos islamistas, desde a Nigéria até a Indonésia. Quando o establishment nas comunidades atingidas reage tentando restabelecer a ordem, muitas vezes com apoio ocidental, civis inocentes sofrem as conseqüências, e os terroristas tendem a radicalizar ainda mais a sua ação. De modo paradoxal, as políticas oficiais usadas para reprimir a violência se tornam instrumentos em favor dos fundamentalistas.
Como então o Ocidente precisa – e pode – reagir? Há verdadeiramente perigo ou só exageros sensacionalistas? O islã é uma religião violenta ou os islamistas nos apresentam uma corrupção da bela tradição que no passado enriqueceu o Oriente – e que poderia voltar a fazê-lo? As respostas dependerão de mudanças internas no islã que podem perfeitamente ser estimuladas por meio de um diálogo entre fés e civilizações. A última parte deste livro observa os argumentos contra e a favor da coexistência ou de seu oposto, o “choque dos mundos”. Numa conjuntura tão complexa, a conclusão só pode ser ambígua. Podem haver, contudo, algumas lições.
A primeira é a de que o islã é, em potência, mais flexível do que se pensa; permite e precisa do diálogo com o outro. Da mesma maneira, para não mergulhar numa guerra de religiões sem saída, o Ocidente também precisa dessa comunicação.
Porém, com um islamismo violento que preconiza uma guerra para estabelecer o reino de Deus na Terra, não existe diálogo viável: ele constitui um crescente risco para a segurança de todos. A luta contra ele é não somente um interesse do mundo ocidental como também da grande maioria dos muçulmanos, que seriam suas primeiras vítimas. No entanto, sem transformações profundas na estrutura da desigualdade global que mantém essas populações presas num ciclo de empobrecimento e isolamento, não se conseguirá evitar a ampliação maciça do extremismo. A tarefa, portanto, é abrangente – e da maior urgência. A leitura deste livro pretende colaborar com ela.
Pelas complexidades inerentes ao assunto, escrever este livro implicou um trabalho árduo. Queria agradecer em particular o apoio inestimável de meus alunos Lívia Oushiro e Orion Klautau e da minha esposa, Eliane Rosenberg Colorni, que tornaram o texto final melhor e mais legível. A leitura atenta dos originais por parte deles foi, sem dúvida, fundamental.

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